Cavaleiro da Lua e Saúde Mental
Poucas vezes na história da cultura pop tivemos uma série que abordasse tão bem as questões de saúde mental e estigmas sociais como Cavaleiro da Lua. A recente produção da Marvel segue uma receita de sucesso de outras séries, como WandaVision e Loki, mas mergulha profundamente em questões essenciais da vida. Deixando as críticas ao CGI de lado, é exatamente essa intensidade e abordagem que torna Cavaleiro da Lua uma das melhores séries do MCU.
O que é melhor: enredo ou elenco?
Impossível responder. Criada e baseada nas HQs de Jeremy Slater, a história ganha vida própria, apesar do inicial estranhamento de uma narrativa fragmentada. Muito provavelmente foi esse início dividido e mais lento que afastou muitas pessoas. Se você é uma delas, já deixo a dica: vale muito a pena dar outra chance. Pois, lentamente, o enredo mostra a que veio, brincando e testando nosso poder de percepção. No fim, cabe a nós montarmos o quebra-cabeça da trama, fruto das projeções do protagonista.
Aliás, não dá para falar nisso e não elogiar a interpretação fantástica de Oscar Isaac. Primorosa e tão bem cuidada que, aos poucos, quase não nos damos conta da sua desenvoltura em fazer 2 ou 3 personagens diferentes. Em que cada um com sua personalidade, caráter, pensamento, voz e até postura corporal. Layla El-Faouly (May Calamawy) e Ethan Hawke (Arthur Harrow) também têm seus méritos e se destacam como grandes intérpretes.
Entendendo a Saúde Mental do Protagonista e a Cultura Egípcia
Porém, naturalmente, a grande chave para se compreender a série é entender aquilo que se conhece hoje como transtorno dissociativo de personalidade (TDI). Flutuando entre a principal – Marc Spector -, a secundária – Steven Grant -, e ainda uma terceira – Jake Lockley – , o protagonista gradativamente nos dá pistas de sua condição. Essa se dá principalmente por consequência de uma mãe abusiva, e da perda de um irmão que lhe rendeu uma culpa injusta.
Além disso, tomando como pano de fundo toda uma cultura e religião egípcia, vamos compreendendo o porquê de tais escolhas, ao entender que os deuses, em algum momento, decidiram não mais intervir. Restam apenas poucos representantes dessas divindades, muitos inclusive de entidades dúbias e de temperamento difícil, fazendo a ponte entre mundo divino e mundo humano.
Na série, Khonshu se aproveita de um momento de fraqueza de Marc para lhe conceder mais vida. No entanto, também se aproveita de sua condição mental, uma vez que isso proporciona um maior controle sobre seu avatar. Já Ethan, antigo representante do deus da Lua, já não aceita somente a justiça posterior: sua missão é libertar Ammit e julgar as pessoas antes mesmo de cometerem seus erros.
Pra Variar, Sempre Jung…
Duas coisas se destacam a partir da ótica Junguiana e de elementos da Psicologia Junguiana no seriado. A primeira delas, naturalmente, é o conceito de cisão ou separação da consciência. Para Jung, essa dissociação se dá quando há uma atitude muito unilateral do ego, o representante do consciente que interage com o mundo externo. Em resumo, ele é quem vive e experimenta as sensações, emoções, experiências e vivências no mundo material. No entanto, se não estiver ou for maleável, acabará por permitir que certas patologias afetem a psique das pessoas.
Essas invasões são os famosos complexos afetivos: padrões rígidos de comportamento, pensamento e ações que possuem enorme carga afetiva. Algumas vezes, são traumas do passado, conteúdos reprimidos ou que não possuem força para chegar à consciência. No caso do protagonista da série, a morte do irmão mais novo e a culpabilidade que a mãe lhe impôs o faz criar uma nova personalidade. Tudo isso para lidar com a dor e proteger a mente de possíveis danos. Ou seja, romperam a barreira do inconsciente e irromperam a consciência.
Dessa forma, constituem o que Jung denominou inconsciente pessoal. Mas há também um inconsciente, este infinitamente maior, dito coletivo, que contém toda a herança histórica e cultural de toda a civilização – os Arquétipos. Às vezes, também podem interferir na mente de uma pessoa, influenciando-a positiva ou negativamente, com conteúdos universais e atemporais.
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Então, para lidar com certas situações difíceis ou incompatíveis, a psique, às vezes, se dissocia, criando novas personas, ou fragmentos, dessa personalidade total. Dessa maneira, cada uma tem uma vida própria, literalmente, e precisa se adaptar a diferentes situações da vida. O problema é quando elas se identificam com os complexos que podem se tornar autônomos, dominando e afetando a nossa vida.
O Monoteísmo vs. Politeísmo da Psique: o que isso tem a ver com Cavaleiro da Lua?
Outro ponto crucial na série diz respeito a um conceito chamado monoteísmo, ou politeísmo, da mente. Idealizado por James Hillman, seguidor de Jung e estudioso da Psicologia Arquetípica, o conceito vem para explicar o funcionamento da psique a nível coletivo. Para Hillman, quando uma mente está totalmente devotada a apenas uma ideia, é como se adorasse e servisse a apenas a uma divindade.
Essa devoção se compreende também quando, na Psicologia Moderna, percebemos e estudamos as divindades como patologias e transtornos da psique. Uma variedade de complexos, cuja alcunha são paternos e/ou maternos, explicam-se a partir dos mitos de Zeus, Hades, Hera, Perséfone, entre outros. Enfim, a história nos mostra que o politeísmo sempre foi uma máxima entre diferentes culturas e religiões: foi apenas a partir da crença cristã que o monoteísmo se tornou uma máxima.
E vejam: na série, ao servir apenas a Khonshu, Marc deixa que seus traumas do passado se tornem essa neurose, tornando-o incapaz de lidar diretamente com seus problemas. O deus egípcio também se aproveita dessa brecha, mostrando que somente uma mente fragmentada poderia servir aos seus propósitos. Por isso, ao nos fecharmos a apenas uma maneira de ver a vida, estamos automaticamente nos tornando verdadeiros fanáticos de uma ideia só. Eis um dos pilares da clínica e terapia junguiana: fazer com que o indivíduo perceba os vários deuses que o atravessam, como se fossem partes autônomas de sua própria psique.
O Resultado?
Assim, Cavaleiro da Lua deixa uma excelente impressão. E, sinceramente? Tanto faz se a qualidade do CGI, ou as coreografias, usadas nas cenas de ação são boas ou não. O que valeu imensamente a experiência foi o grande acerto da Disney+ em apostar, mais uma vez, na mente/psique como protagonista.
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