Emilia Pérez | A Violência Estética de um Estilo de Filmar
Ancorado em questões tão contemporâneas e explosivas quanto seu estilo de filmar, Emilia Pérez (2024), o novo filme do francês Jacques Audiard, entrega ao espectador a paixão de penetrar no íntimo (necessariamente convulso) de suas personagens.
É uma produção francesa: o diretor é francês, a equipe técnica é basicamente francesa. Mas a principal língua falada nos diálogos é o espanhol: há alguns trechos minúsculos em inglês e (menos ainda) em francês. No entanto, o elenco, especialmente o trio central de atrizes, é hispânico (como a transexual Karla Sofía Gascón) ou tem origem hispânica (é o caso das atrizes americanas, Zoë Saldaña, de ascendência porto-riquenha e dominicana, e Selena Gomez, com uma parte de sua etnia localizada no México).
Audiard, cuja sensibilidade para a articulação do plano cinematográfico o observador pode conhecer de O declínio dos homens (1994), um daqueles policiais do avesso que subvertem o modelo, e Paris, 13º distrito (2021), uma crônica explosiva dos multifacetados grupos humanos de nossos dias, volta a brilhar do longo de Emilia Pérez: seu fascínio pela ação policial está aí, mas também sua afeição a uma crônica sociológica transcendente e ultramoderna.
Como gênero-novidade, Audiard insere em seu trabalho o filme-musical. Mas é de notar que se trata de semimusical: trechos musicais se ligam, em continuidade, com os trechos dramatúrgicos não-musicais. E a utilização do musical dentro do espaço cinematográfico traz sua originalidade: às vezes a reiteração silábica da personagem-ator, às vezes uma posição especial de dança diante da câmara, não estamos em face do musical de sempre.
Audiard disserta com os gêneros para fazer, novamente, o filme que cabe em seus conceitos estéticos. Talvez aproximações simplifiquem demais o raciocínio, mas aqui pretende-se que seja mais um indício que outra coisa: a explosividade estilística de Emilia Pérez se aparentaria com aquela de Os Miseráveis (2019), dirigido por Lady Ly, um realizador francês descendente de imigrantes.
Emilia Pérez, valendo-se da internacionalização de filmar de Audiard, dá a impressão geral de dividir o espírito narrativo com o espírito hispânico de Zoë, Karla e Selena. Daí sua explosividade de sons e imagens, nascida das tensões fotográficas de Paul Guillaume e das canções que transbordam da faixa sonora organizada por Juliette Welfing.
De que trata a história contada em Emilia Pérez?
No começo do filme o indivíduo que atende por Manitas, um violento líder do narcotráfico, procura (quer dizer, sequestra-a com ousadia e violência) a advogada Rita Moro Castro para contratar um médico visando a uma cirurgia de mudança de sexo; Rita deve tratar também das questões legais para as alterações de registro em função desta alteração física e sexual.
O caso esquisito: Manitas tem mulher e filhos, o que num primeiro momento faz a câmara surpreender a perplexidade do olhar de Rita, que se cola ao próprio olhar (ou perplexidade) do espectador. Pouco a pouco a narrativa sedimenta a ideia (ou percepção, ou intuição) de que a mudança de sexo buscada por Manitas, que virá a ser Emilia Pérez, é mais que tudo uma questão existencial.
A advogada interpretada por Zoë tem uma função dialética entre o homem-mulher Emilia (Karla, magnífica) e sua antiga esposa (Selena, notavelmente bem dirigida); em determinadas cenas, numa sequência ao telefone, a tela é cortada em dois ou três quadros (cada quadro ocupado por uma das três personagens) para fazer Emilia e sua esposa digladiarem diante do observador com a advogada sob a chuva de impropérios tentando conciliar.
Filme de abertura do Festival do Rio este ano, exibido preliminarmente numa cabine de imprensa numa das salas do Estação NET Rio, deve seguir uma carreira comercial, construída de discussões em torno da contemporaneidade de seu assunto.